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quarta-feira, abril 28, 2004

 

do capítulo da devolução


Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito , um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo , até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos , olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela , aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece , apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim , olhas as tuas mãos , e elas ambas , tão claras ,
tão seguras , são as mãos de um soldado a arder em febre ,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas sabes , tu viste , e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se , em fileiras angélicas e
gratas , a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra ,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos , o teu cansaço e a
minha miséria , os teus braços e os meus , altos como
cidades , altos como flores

parou o automóvel , lá em baixo , e eu não tenho mais que descer as
escadas , fechar ainda a porta do teu quarto , atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas


Mário Cesariny



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